É amplamente conhecido que o consumo de pornografia é majoritariamente masculino. A indústria pornográfica tradicional ainda se concentra em atender a esse público, produzindo conteúdos com características bastante específicas: sexo performático, ausência de preliminares, foco em genitálias exageradas, e práticas como sexo anal tratadas como padrão. Muitas vezes, a mulher aparece apenas como objeto da cena, em histórias que negligenciam o prazer feminino real.
Relatos de atrizes da indústria revelam os bastidores duros de um mercado que pouco se preocupa com o bem-estar das mulheres envolvidas. Muitas admitem que, em diversas cenas, o que parece prazer é, na verdade, dor — encenada para entreter um público que pouco questiona a veracidade daquilo que vê.
Esse tipo de conteúdo tem, aos poucos, revelado seus efeitos nocivos na vida afetiva e sexual de muitos casais. Psicólogos, terapeutas e sexólogos têm observado o aumento de queixas nos consultórios, especialmente entre mulheres que relatam o desinteresse sexual dos parceiros. Em muitos casos, esses homens são flagrados consumindo pornografia sozinhos, com frequência alta, o que compromete a vida sexual conjugal.
A diferença entre o sexo representado nos filmes e o sexo real é abissal. A vida íntima exige intimidade, tempo e troca. Preliminares, afeto e conexão emocional são aspectos fundamentais para uma relação sexual satisfatória — para ambos. Os homens, muitas vezes levados a acreditar que precisam estar sempre prontos, também necessitam de estímulos, carícias e segurança emocional. A realidade por trás das câmeras mostra que muitos atores dependem de medicamentos e dispositivos para manter a ereção, enquanto o que se vê na tela molda expectativas irreais.
Esse distanciamento entre fantasia e realidade tem impacto direto na dinâmica dos casais. Há quem defenda a abstenção total de pornografia, alertando para os riscos de vício, insatisfação sexual e isolamento emocional. De fato, o uso frequente da pornografia pode moldar o comportamento sexual de forma prejudicial, tornando a masturbação uma experiência mecânica, isolada e incompatível com a intimidade de um relacionamento real.
No entanto, há também outra visão: seria possível ressignificar o uso da pornografia — principalmente entre as mulheres?
Durante o XIX Congresso Brasileiro de Sexualidade Humana, realizado em Belo Horizonte em setembro de 2024, a ginecologista e sexóloga Drª Rayane Pinheiro apresentou reflexões importantes sobre o tema. Segundo ela, é crescente o número de mulheres que a procuram com queixas relacionadas à falta de desejo sexual — muitas em relacionamentos longos, com filhos e histórico sexual limitado.
Essas mulheres, afirma a especialista, compartilham alguns fatores comuns: experiências sexuais empobrecidas, único parceiro sexual, vivências restritas e uma formação marcada por valores familiares, religiosos e sociais conservadores.
Estudos apresentados por Drª Rayane reforçam essa realidade. Uma pesquisa de Davidson et al. (2019) mostra que mulheres com pouca experiência sexual relatam mais ansiedade em contextos íntimos e maior sentimento de inadequação. Já um estudo de Fisher et al. (2021) revela que essas mulheres tendem a internalizar normas repressivas, o que prejudica sua autonomia sexual.
O aprendizado sobre a sexualidade continua sendo falho no Brasil. Homens aprendem sobre sexo por meio da pornografia — que, como já vimos, está longe da realidade. Mulheres, por sua vez, muitas vezes não aprendem em lugar algum. A comunicação sexual entre casais fica prejudicada, e isso compromete a satisfação, o desejo e até mesmo a estabilidade do relacionamento.
Segundo a sexóloga, o uso de fantasias sexuais pode ser um importante recurso terapêutico para resgatar o desejo. “As mulheres fantasiam pouco”, explica. Entre os recursos que ajudam a ampliar esse repertório estão:
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Podcasts com temas eróticos
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Contos narrados
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Aplicativos de histórias eróticas interativas
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Fanfics
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Plataformas de mindfulness voltadas ao prazer sexual
Esses elementos estimulam a imaginação e ajudam a despertar o desejo de forma mais saudável.
Sobre o uso da pornografia, Drª Rayane acredita que há sim espaço para que mulheres façam uso desse tipo de conteúdo de forma positiva — desde que com orientações adequadas. Ela sugere buscar filmes com representações mais realistas, que valorizem o prazer feminino e histórias com mais profundidade. Além disso, recomenda que as mulheres observem suas próprias reações: que tipos de corpos despertam mais interesse, quais cenas são mais estimulantes, e quais sensações surgem durante o consumo.
Dados científicos apontam que 55% das mulheres que assistem a conteúdos eróticos relataram maior disposição para a atividade sexual subsequente.
Mas e o risco de dependência? Ele existe. Embora os casos de vício em pornografia sejam três vezes mais comuns entre homens, mulheres também estão sujeitas a esse risco.
Em um estudo de 2019 intitulado “Women’s Engagement with Pornography: Implications for Sexual Satisfaction and Well-being”, os pesquisadores concluíram que:
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O consumo moderado está relacionado a maior satisfação sexual;
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Mulheres espectadoras relataram autoestima sexual mais elevada e maior conforto ao conversar sobre sexo com parceiros;
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O uso excessivo pode gerar isolamento e insatisfação;
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Casais que assistem juntos relataram melhor comunicação sexual e maior intimidade;
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Entretanto, a pornografia também pode ser motivo de conflito nos relacionamentos.
Diante disso, especialistas reforçam: a pornografia pode sim ser um recurso válido — desde que usada com moderação, consciência e, preferencialmente, com orientação.
A discussão está longe de acabar, mas abrir espaço para esses diálogos é o primeiro passo para transformar a forma como lidamos com o sexo, o prazer e os relacionamentos.